Comboio. Prenúncio de evasão, não só no espaço mas no tempo. Um certo estilo de viajar, reminiscente de outras épocas, senhoras finas com golas de pele e cavalheiros de cartola... Uma organização espacial com rota e regras definidas, o trilho uma linha de ferro, o lugar uma sucessão taxonomica de designações, comboio-carruagem-assento a definir com precisão quase científica o nosso âmbito na viagem. E depois, muito mais espaço para estender as pernas (do que em qualquer outro meio de transporte!), uma janela grande só para nós... como a dizer-nos "enquanto este trajecto durar, este retalho do mundo é vosso. Deleitem-se..."
Há ainda o embalo, a cadência com que a máquina compassa a marcha. Como um tiquetaquear melancólico e sereno, o comboio abstrai-nos do tempo quotidiano e confere-nos o seu próprio ritmo. Viajamos no tempo tanto como no espaço. O tempo da viagem ganha vida própria, alastra aos poucos e sincroniza-nos os batimentos cardíacos. Antes mesmo de nos instalarmos na Viagem, é a Viagem que se instala em nós.
Ficava na Lapa o Hotel que tínhamos reservado, com desconto especial de um desses vouchers promocionais. Saímos do metro no Marquês e caminhámos pela cidade, estonteadas com a profusão de confeitarias de montras apetitosas à vista e ao olfacto, cujos paladares não pudemos testar devido ao adiantado da hora.
O Porto acolhia-nos com a sua serena sobriedade, suaves cantarias graníticas (que descanso do histriónico calcário lisboeta!), varandas e bandeiras de porta em rendilhado ferro fundido, azulejos novecentistas nas fachadas, cores sóbrias em conjugações nobres lembrando a ancestral presença britânica que em mais do que um aspecto deixou a sua marca na cidade.
O Hotel era... aceitável. Mas fez-me pensar que este moderno conceito de "low-cost" pretendendo manter uma aparência de qualidade devia ser abordado com mais humor... facilitaria a coisa.
"Estimados clientes: todos os quartos estão equipados com ecrã lcd; no entanto, por sermos um hotel "low-cost" só tivemos verba para os de 15", pelo que lhe fornecemos também um par de binóculos, para que possa desfrutar em pleno dos detalhes da sua programação favorita sem deixar o conforto da sua cama!"
"Estimado cliente: claro que temos um buffet de jantar à sua espera, para que possa relaxar e revigorar as forças depois da sua cansativa viagem! O tema do buffet deste mês é "Sozinho em casa" e inclui todas as comidas que uma criança pequena, esquecida em casa pelos pais, consegue fazer utilizando os enlatados da despensa, cozendo massa ou mexendo ovos... Divirta-se!
E já agora verifique... não esqueceu ninguém em sua casa?"
"Saiu para a rua, decidida"... Quase se sente no ar a letra de Carlos Tê. As montras do Porto, bem iluminadas à noite, ressoam ousadia e modernidade. À medida que nos aproximamos da zona turística, no entanto, o panorama altera-se: lojas (abertas!) de artesanato urbano, decoração e souvenirs; bares e restaurantes com esplanadas cheias de gente descontraída... O que mais me marca é o contraste eclético, simbiótico, entre tradição e vanguarda. Tão depressa descubro o Clube dos Fenianos, colectividade cultural onde se joga xadrez e bilhar, e onde (nas palavras do porteiro) as pessoas "convivem", como vejo automóveis de sonho descer a Avenida dos Aliados e raparigas bem produzidas pontilhando as ruas com os seus stillettos de astronomicas alturas.
Já na Mouzinho da Silveira, somos abordadas por um rapaz ainda novo que pede ajuda. Com uma segurança que assombra e sem nunca desviar o olhar, fala-nos da sua vida nas "ilhas" do Porto, esses espaços míticos e invisíveis cuja presença se adivinha atrás de vielas esconsas apenas porque lemos sobre isso em algum jornal. Na estação de metro de S.Bento, também ela subterrânea, uma exposição temporária revela o trabalho desenvolvido nestes contextos por uma Associação........... Não há qualquer indício nas ruas principais.
Chegamos finalmente à Ribeira, onde a penumbra das ruas realça o diálogo luminoso dos letreiros das Caves na banda de lá: Sandeman, Ofley, Graham, Fonseca... O rio faz eco deste desfile, qual bola de espelhos reenviando brilhos em todas as direcções. Há um palco onde actua uma jovem banda do momento e as esplanadas explodem com gente alegre, bonita, inspiradora.
Passeamos ao longo do rio e deixamo-nos contagiar pelas luzes e pelo ambiente boémio. A noite é ainda uma criança...
Na manhã seguinte rumamos para Serralves, aguardava-nos 2 exposições que gostaríamos de ver. Primeiro Mel Bochner | Se a Cor Muda, considerado um dos fundadores da arte conceptual, Mel Bochner (n. 1940) faz parte de uma geração de artistas que, no início da década de 1960, radicalmente minaram o estatuto dominante da pintura. A introdução da linguagem tornou-se uma importante estratégia no seu trabalho, iniciada com "Working Drawings and Other Visible Things on Paper Not Necessarily Meant to Be Viewed as Art” [Desenhos técnicos e outras coisas visíveis sobre papel não necessariamente destinadas a serem vistas como arte], a exposição que, em 1966, apresentou na galeria da School of Visual Arts em Nova Iorque. Considerada como a primeira exposição de arte conceptual, essa mostra foi crucial para o desenvolvimento do movimento.
"Se a cor muda” apresenta trabalhos de todas as fases criativas de Bochner, incluindo, além de alguns dos seus primeiros desenhos e esculturas de pequena dimensão, instalações, murais e fotografias. As suas obras mais recentes assinalam um regresso à pintura, que em tempos viu com suspeita. Não obstante a sua filiação conceptual, Bochner tem consistentemente utilizado nos seus trabalhos a cor, investigando o modo como esta subverte a linguagem e o texto. A sua série de "pinturas tesauro” exibe cadeias de palavras sobre telas de grandes dimensões. Pintadas em cores vivas, as letras competem com um fundo igualmente colorido, exigindo do espectador que simultaneamente leia e observe.
Não saímos sem antes ir espreitar a instalação de Alexandre Estrela | Meio Concreto, Alexandre Estrela (n. Lisboa, 1971) tem vindo a interrogar as potencialidades da imagem em movimento e as características específicas dos dispositivos que a captam e dão a ver. Gerando uma perturbadora suspensão do significado, associações inesperadas entre imagem, som e estrutura originam enigmáticos efeitos visuais.
"Meio Concreto”, a mais extensa mostra de Alexandre Estrela até à data, apresenta maioritariamente uma seleção de trabalhos recentes, realizados entre 2007 e 2012, muitos dos quais adaptados aos espaços do Museu de Serralves. A exposição desdobra-se em dois percursos, nos quais são ativadas diferentes peças, consoante o dia em que a visitemos seja par ou ímpar. No estado latente, os dispositivos de som e de imagem ganham um caráter escultórico, central para uma obra que tem vindo a questionar a pretensa imaterialidade da imagem.
........................depois de Serralves, do Bolhão e da Francesinha... e da partida para a Régua.
Chegamos à Régua dez minutos antes da partida do comboio histórico do Tua. Mas onde está ele? Seguimos o som das concertinas e atrás de um pavilhão, qual manobra cénica de maior suspense, lá aparecem as carruagens de madeira cheias de gente sorridente e senhoras a vender aos turistas os típicos biscoitos regionais. Assim de longe o comboiozito parece brinquedo de crianças... Custa a crer que foi em tempos o meio de locomoção mais avançado da época, transportando pessoas e mercadorias para a Invicta com pompa e luxo.
Deleitando-nos com cada pormenor - o ferro-fundido do alpendre, o design retro dos fechos da porta, o número da carruagem em latão bem polido - encontramos os nossos lugares à janela mesmo a tempo... e a "viagem histórica" começa.
A sensualidade destas encostas, a forma como se reclinam em pregas e refegos lânguidos sobre o rio, acentuadas pelos bamboleantes traços paralelos do vinhedo... transporta-me a um tempo sem métrica de relógio, marcado apenas pelos rituais da terra: poda, monda, colheita... a festa da vindima como corolário de um ano de suor. O estalar dos bagos sob os pés descalços, o sumo a escorrer pelas pernas, a sensualidade da dança noite dentro, as bebedeiras de mosto.
Enquanto divago, observo o planar de uma águia pesqueira sobre o espelho das águas. Talvez o turismo lhe seja também vantajoso, deixando no encalço dos barcos que sobem e descem o rio carregados de turistas algum peixe mais estonteado pela agitação dos motores, que ela terá facilidade em apanhar.
Também a população local vai lucrando com estas vagas de gente curiosa, trazida pelo mediatismo (de mote triste) da barragem. Que saibam aproveitar estes "quinze minutos de fama" para construir uma oferta diversificada e de qualidade, que consiga manter-se sustentável quando o burburinho passar!
Nas bermas da linha brinda-nos um festival de cores e aromas entre rosas e glicínias, limoeiros e, claro está, oliveiras e as vinhas encosta acima... De quando em onde eucaliptos e salgueiros pontuam as margens do rio, sereno rio que ondula ao vento e à passagem dos barcos, mais tradicionais ou maiores e mais modernos, carregados de turistas que acenam à passagem do comboio. Eles são o novo ouro rubro de uma região que já não vive do seu "néctar dos deuses", que se deixou envelhecer à medida que os seus jovens procuraram melhores oportunidades, e agora soçobra ante uma luta de interesses maiores (entre os grandes do vinho e os gigantes da electricidade) da qual é espectadora, ainda que venha a ser a principal afectada. Que os Deuses lhe sejam mansos...
...no caís do tua.
Domingo amanheceu radioso, com o rio a reflectir todos os matizes de verde das suas margens. Depois de um opíparo pequeno-almoço cheio de pãezinhos, queijos diversos, compotas e doces, cappuchino e sumos, frutas e bolos... rumámos ao Museu do Douro, não sem antes passarmos pelo cais a saber da hipótese de uma pequena voltinha de barco. Infelizmente, a hora das voltas curtas tinha passado e os barcos que agora saíam iriam fazer passeios de duas horas... que nos impossibilitariam de ver qualquer outra coisa na cidade. Decidimo-nos, pois, pelo Museu.
E ainda bem que o fizemos. A exposição está muitíssimo completa e interessante, permitindo um vislumbre da História e das técnicas que enquadram a produção vinícola da região, de uma forma não apenas teórica mas também emotiva e sensorial: cheiros, cores, texturas e relatos diversos na primeira pessoa transportam-nos de corpo e alma para o palco do Douro. Essa existência entranha-se em nós.
Havia também para ver uma interessante exposição de fotografia de Georges Dussaud, trabalho realizado na região durante a década de 80's. Trinta anos mais tarde, o Museu foi à procura de alguns dos retratados e filmou com eles pequenas entrevistas, em que temos a percepção da forma como o contexto evoluiu ao longo do tempo. A emigração, as dificuldades laborais, a evolução das técnicas ligadas à uva e ao vinho, são apenas alguns dos tópicos abordados. Saímos dali com o melhor de dois mundos: a tradição retratada por Dussaud, a inquietação de aperceber o presente e imaginar o futuro da região. No Douro, anfiteatro aberto sobre um rio, está tudo em aberto. Do cuidado, mestria e inteligência de quem nele hoje habita e sobre ele decide, depende um futuro em tons verde e ouro, ou cinza e betão.
boas viagens...
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